domingo, 9 de dezembro de 2018

A Colaboração Move o Mundo

Texto postado no Wordpress, no dia 9 de Dezembro de 2018.



Bellum omnium contra omnes. Essa famosa frase de Thomas Hobbes em seu tratado De Cive, publicado no século XVII, faz parte do nosso imaginário. Significa "a guerra de todos contra todos", e é a justificativa que Hobbes dá para a existência do Estado, sem o qual a sociedade decai para seu estado natural de luta generalizada.
Pois bem, na aula de hoje, o Olavo pediu que nós façamos o seguinte exercício:

  1. Listar todos os itens do cômodo em que estamos.
  2. Descrever como cada item foi parar onde está, desde seu estado desmontado e em matéria prima.
Vamos lá, eis os itens da minha varanda, onde estou agora. Vou me ater apenas aos itens móveis, e apenas aos que estão do meu lado do balcão central, para minimizar a lista:
  1. Uma mesa
  2. Quatro cadeiras pretas
  3. Uma cadeira de escritório com regulagem de altura
  4. Um pé de manjericão
  5. Um vaso auto irrigável, sem nenhuma planta
  6. Um notebook e seu carregador
  7. Uma xícara de café de vidro sobre seu pires e ao lado de uma colher de aço inox
  8. Um fone de ouvido
  9. Duas lapiseiras
  10. Um caderno
  11. Um boné
  12. Uma fruteira de aço, com umas bolas decorativas
  13. Uma toalha de mesa
Vamos então à segunda parte do exercício, item por item:
  1. Uma mesa: essa mesa é feita com MDF, e é branca. O MDF foi feito de madeira de pinheiro, e tudo começou há quase duas décadas atrás. Uma pessoa subiu a árvore (usando equipamento próprio para escalada da árvore) para apanhar o fruto do pinheiro, chamado de cone, e a partir dele obteve a semente. Uma pessoa selecionou a semente usando uma peneira grande. As sementes foram peneiradas sobre tubos, chamados tubetes, que seguiram para um viveiro chamado casa de germinação. A casa de germinação é uma construção de metal e lona transparente, parecida com uma estufa. A casa de germinação é também equipada com irrigação automática, que irrigou os tubetes passando por cima deles. Depois de um mês, as mudas passaram para outro local no viveiro, onde foram controlados os nutrientes por meio de substratos específicos - esse processo todo foi controlado provavelmente por um engenheiro que conhecia as propriedades e técnicas necessárias. As mudas ficaram assim por aproximadamente sete meses, até alcançarem cerca de um palmo de altura, quando uma ou mais pessoas recolheram as mudas das árvores que compõe a minha mesa, e as transportaram para a fazenda de plantio. Lá foram plantadas por trabalhadores com o auxílio de um equipamento próprio para isso, que se assemelha a um tubo pontudo, dentro do qual vai a muda. Plantadas as mudas, outras pessoas aplicaram o formicida e o herbicida. As mudas demoraram aproximadamente dezessete anos para se formar em árvores prontas para colheita, que foi realizada com auxílio de um trator grande chamado colhedor, que foi operado por uma pessoa treinada, com auxílio de mais duas pessoas. O colhedor cortou as árvores e limpou os galhos de modo a deixar apenas o tronco, em tamanhos padronizados. As toras limpas e padronizadas foram carregadas em um caminhão grande e levadas pelo motorista à fábrica de painéis de madeira, onde foram descarregadas. A fábrica é bastante automatizada, com diversos engenheiros e operários que controlaram tudo que aconteceu a partir deste momento. As toras da minha mesa passaram por uma série de processos mecânicos, como descascamento, picagem, seleção, secagem e compactação. Um revestimento melanínico branco foi aplicado, que é o que dá a cor da minha mesa. Em uma marcenaria, uma pessoa negociou as chapas de MDF com a fábrica, pagou usando um banco, e as chapas da minha mesa foram carregadas em um caminhão, transportadas até a marcenaria por um outro motorista, e descarregadas por uma outra pessoa. Talvez essa mesma pessoa que negociou as chapas também negociou os parafusos da mesa com uma fábrica de parafusos, o papelão da embalagem de uma fábrica de papelão, o plástico da embalagem com uma fábrica de embalagem, o papel para manual de instruções com um distribuidor de papel, etc. Na marcenaria, alguém pensou no desenho da mesa, e criou um projeto. Seguindo esse projeto, os marceneiros cortaram os painéis, furaram e embalaram a mesa. Outra pessoa na marcenaria deve ter negociado a venda da mesa pronta com alguém da loja de móveis. Fechado o negócio, outras pessoas realizaram o carregamento, transporte, descarregamento e estocagem da minha mesa. Pessoas completamente diferentes programaram o site por meio do qual fiz a compra da mesa na internet. E ainda outras pessoas foram responsáveis por carregar a minha mesa em um caminhão, transportá-la até o antigo apartamento da minha esposa. Lá, eu montei a mesa, na forma como ela se encontra hoje. Nós mudamos algumas vezes de apartamento, e nesse processo algumas outras pessoas nos ajudaram a transportar a mesa de um local até outro, até ela se encontrar aqui.
Passaria a vida toda repetindo esse processo apenas para os 13 itens da lista acima, que corresponde a um pequeno pedaço do meu apartamento. E admito que tomei diversos atalhos na exposição acima. Por exemplo, eu não disse nada sobre os parafusos da mesa, o papelão e os plásticos da embalagem, o papel do manual. Também não disse nada sobre os equipamentos utilizados pelas pessoas, por exemplo, como foi que o operador da cortadeira teve acesso a uma cortadeira? Quem a fez?  Quem fez o equipamento de escalada em árvore, os tubetes, o irrigador automático, a casa de germinação? Quem desenhou e construiu a fábrica de painéis? Quantas pessoas foram necessárias para coordenar toda essa orquestra?
É provável que muitos milhares de pessoas colaboraram anonimamente para que essa minha mesa terminasse aqui onde está agora. Que dirá então da lista dos 13 itens? Que dirá do meu apartamento, ou de tudo que posso ver a partir da minha varanda, um pequeno pedaço de uma das mais de cinco mil cidades do Brasil?

Como pode alguém crer que essa trama praticamente infinita de colaboração pode se dar a partir de uma luta de todos contra todos, ou que é possível gerenciar tudo isso por um governo central?

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Livros lidos em 2018

O fim do ano se aproxima. Apesar de ainda haver um restinho de ano, acho que é um momento oportuno para fazer o balanço dos livros que li ao longo de 2018, tendo em vista que não devo ler mais que um ou dois até 31 de Dezembro.

Minha meta era que eu lesse trinta livros, com a única condição de que eu sentisse que, para cada livro lido, eu pudesse dizer que um Livro havia sido Lido, com os dois eles maiúsculos. Gibis ou revistas grossas estão fora, por exemplo, bem como livros que eu tenha apenas inspecionado um capítulo ou outro. Essa condicional foi inserida para que eu pudesse evitar a tentação do auto-engano, especialmente porque a motivação subjacente é de que eu possa ingressar no mundo da alta cultura, senão de maneira efetiva, ao menos de maneira honesta.

Não cheguei nem perto dos trinta, mas me consolo no fato de que nunca li tanto na minha vida. Além disso, nunca li tão bem, e nunca estive tão consciente do meu próprio analfabetismo literário. A última vez que tive essa consciência foi há 15 anos.

Sinto-me como se tivesse colocado minha humanidade dentro de uma caixa de sapatos, e esta dentro de um baú junto com outras ninharias, que por sua vez foi trancado e jamais aberto por muitos anos, tampouco descartado de uma vez, mas indo de um lugar ao outro conforme a vida nos exige que mudemos de endereço, seguindo aquilo que tem maior utilidade no momento, como um emprego ou algo assim. Quis a providência que eu me lembrasse dessa humanidade, e lá fui eu ao sótão da minha história resgatar essa caixa, já muito empoeirada, muito desgastada, mas iluminada mesmo assim.

Sim, há 15 anos atrás eu sabia da minha ignorância, e essa sabedoria havia se perdido. Hoje volto a ter essa consciência e, meu Deus, que deleite é essa sensação.

Vamos aos livros, na ordem em que os finalizei:


  1. Mortimer J. Adler – Como Ler Livros
  2. Olavo de Carvalho – O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota
  3. Georges Bernanos – Diário De Um Pároco De Aldeia
  4. Lima Barreto – Recordações Do Escrivão Isaías Caminha
  5. Orígenes Lessa – O Feijão E O Sonho
  6. Homero – Ilíada
  7. William Shakespeare – A Megera Domada
  8. Leon Tolstoi – A Morte de Ivan Ilitch
  9. A. D. Sertillanges – A Vida Intelectual
  10. Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas
  11. Graciliano Ramos – Vidas Secas
  12. Pedro Siqueira – Todo Mundo Tem Um Anjo Da Guarda
  13. Machado de Assis – Histórias Sem Data
  14. Marcel Novaes – O Grande Experimento
  15. Fiodor Dostoievski – Crime e Castigo
  16. Viktor Frankl – Em Busca de Sentido

Como se vê, dei ênfase em literatura de ficção (nove de dezesseis) e, em particular, na literatura brasileira (cinco de nove). É uma reorientação drástica do meu hábito anterior de menosprezar a ficção como inútil, e a ficção brasileira como uma inutilidade de baixa qualidade.

Não é à toa. Uma boa história é aquela que poderia ter acontecido, e lê-la é vivê-la. Foi lendo Crime e Castigo que eu finalmente entendi que o criminoso é levado ao crime não necessariamente por doença da mente, mas por doença da alma. Foi lendo a Ilíada que eu entendi que os grandes homens também padecem dos sentimentos mais mesquinhos. Foi lendo Lima Barreto que eu entendi como é fácil se deixar alienar, independente de seu intelecto. E assim vivi não só a minha vida, mas também a de um assassino confesso, a de um semi-deus grego, a de um jornalista na época do império…

E voltando à questão da minha própria incapacidade literária: foi só quando cheguei no Dostoievski que, digamos assim, a tal da humanidade esquecida na caixa de sapato foi de fato recuperada. Li toda a primeira parte sem entender bulhufas. Na primeira leitura, não havia captado, por exemplo, que “Raskol” significa dividido em russo, que “Razum” significa razão, e que isso traz implicações simbólicas essenciais na mensagem que está sendo transmitida. Quantos símbolos não terei ignorado nos primeiros quatorze livros da lista? Será que os Li mesmo, com ele maiúsculo? Algo me diz que terei que reler todos os primeiros quatorze livros da lista algum dia.

E vale notar: se foi a Providência que me motivou a ir ao baú esquecido, foi Olavo de Carvalho quem me deu a chave para destrancá-lo, por meio de seu Curso Online de Filosofia. Devo muito também ao Francisco Escorsim, que me ajudou a desempoeirar a caixa de sapato. Que Deus os abençoe.

Negra Consciência


Pedro Américo - A Libertação dos Escravos (1889)

Por racismo entendo violência, isto é, agressão física, motivada etnicamente, a uma pessoa de etnia negra. Além disso, o brasileiro também entende como racismo ofensas a honra de uma pessoa pelos mesmos motivos. Eu também aceito essa definição, conquanto ache importante guardar o senso das proporções: assassinar alguém por sua cor de pele está bem distante de xingar alguém de macaco.
A situação real do Brasil, a qual qualquer pessoa que não esteja ideologicamente comprometida constatará facilmente, é que ainda acontece situações do segundo tipo, enquanto situações do primeiro tipo são muito raras. Além disso, o brasileiro reconhece a perniciosidade desse tipo de comportamento. Patrícia Moreira, que foi filmada em 2014 xingando um jogador de futebol de macaco, teve sua vida praticamente destruída.
O melhor caminho para enfrentar o problema real do racismo passa por reconhecer que o racismo vem de seu passado escravagista e as consequências que teve no imaginário do brasileiro. A escravidão era prática comum na África islâmica, e era dali que o português e o brasileiro compravam seus escravos. A conexão imaginária que era feita naquela época era simples: um africano, em terra brasilis, só poderia ser um escravo ou um alforriado. Machado de Assis, com Brás Cubas, e Lima Barreto, com Isaías Caminha, mostram como era ser um senhor de escravos ou um negro pouco após a abolição.
A distância entre a história de Brás Cubas, Isaías Caminha e Patrícia Moreira revelam a evolução pela qual passou o imaginário brasileiro desde a abolição em 1888. O africano deixou de ser um escravo para ser, em efeito, como qualquer outro em nossa sociedade. O direito de não ser diferenciado é o que garante hoje a dignidade do negro no Brasil, um dos países mais miscigenados do mundo.
O Movimento Negro atual, e a Esquerda que se apropriou dele, passam ao largo da situação real descrita acima. Para eles, a verificação de que os negros são maioria entre os pobres é suficiente para condenar, sem direito à defesa, todos os brancos pelo crime de racismo. Os mais bonzinhos gentilmente concedem que o crime é cometido inconscientemente. Naturalmente, estão excluídos do debate os brancos, e àqueles que não subscrevem a esta tese resta a generosidade de um Paulo Cruz ou outro intelectual negro com "consciência de causa" defendê-los. Isto se este tiver a disposição  de combater racismos verdadeiros que inevitavelmente sofrerá em decorrência.
A fórmula que tem dado certo por mais de um século é agora vilipendiada por aqueles que se dizem representantes dessa "classe oprimida". A solução, dizem eles, é forçar a correção, tratando o sintoma. O racismo estará sanado no dia em que todos os coortes da sociedade, em todas as suas estratificações possíveis, observarem a proporção exata das etnias existentes no todo. Não importa que os negros tenham igualdade de direitos: importa apenas que tenham igualdade de resultado, ainda que isso signifique a aproximação a um sistema de privilégios concedidos por força da lei a um grupo de selecionados. De que outra forma podemos chamar as cotas raciais e outros tipos de tratamento diferenciado? Além disso, o que era a escravidão senão um sistema de privilégios concedidos por força da lei?

Enquanto as consequências imediatas da escravidão são drasticamente diferentes daquelas das cotas raciais, o originador fundamental do imaginário racista continua. É assim que a Esquerda e o Movimento Negro reinventam a escravidão, e o fazem com motivações políticas. No processo, retrocede a sociedade e, com ela, o boi de piranha de toda a manobra: ninguém menos que o próprio negro.