
Bellum omnium contra omnes. Essa famosa frase de Thomas Hobbes em seu tratado De Cive, publicado no século XVII, faz parte do nosso imaginário. Significa "a guerra de todos contra todos", e é a justificativa que Hobbes dá para a existência do Estado, sem o qual a sociedade decai para seu estado natural de luta generalizada.
Pois bem, na aula de hoje, o Olavo pediu que nós façamos o seguinte exercício:
Pois bem, na aula de hoje, o Olavo pediu que nós façamos o seguinte exercício:
- Listar todos os itens do cômodo em que estamos.
- Descrever como cada item foi parar onde está, desde seu estado desmontado e em matéria prima.
- Uma mesa
- Quatro cadeiras pretas
- Uma cadeira de escritório com regulagem de altura
- Um pé de manjericão
- Um vaso auto irrigável, sem nenhuma planta
- Um notebook e seu carregador
- Uma xícara de café de vidro sobre seu pires e ao lado de uma colher de aço inox
- Um fone de ouvido
- Duas lapiseiras
- Um caderno
- Um boné
- Uma fruteira de aço, com umas bolas decorativas
- Uma toalha de mesa
- Uma mesa: essa mesa é feita com MDF, e é branca. O MDF foi feito de madeira de pinheiro, e tudo começou há quase duas décadas atrás. Uma pessoa subiu a árvore (usando equipamento próprio para escalada da árvore) para apanhar o fruto do pinheiro, chamado de cone, e a partir dele obteve a semente. Uma pessoa selecionou a semente usando uma peneira grande. As sementes foram peneiradas sobre tubos, chamados tubetes, que seguiram para um viveiro chamado casa de germinação. A casa de germinação é uma construção de metal e lona transparente, parecida com uma estufa. A casa de germinação é também equipada com irrigação automática, que irrigou os tubetes passando por cima deles. Depois de um mês, as mudas passaram para outro local no viveiro, onde foram controlados os nutrientes por meio de substratos específicos - esse processo todo foi controlado provavelmente por um engenheiro que conhecia as propriedades e técnicas necessárias. As mudas ficaram assim por aproximadamente sete meses, até alcançarem cerca de um palmo de altura, quando uma ou mais pessoas recolheram as mudas das árvores que compõe a minha mesa, e as transportaram para a fazenda de plantio. Lá foram plantadas por trabalhadores com o auxílio de um equipamento próprio para isso, que se assemelha a um tubo pontudo, dentro do qual vai a muda. Plantadas as mudas, outras pessoas aplicaram o formicida e o herbicida. As mudas demoraram aproximadamente dezessete anos para se formar em árvores prontas para colheita, que foi realizada com auxílio de um trator grande chamado colhedor, que foi operado por uma pessoa treinada, com auxílio de mais duas pessoas. O colhedor cortou as árvores e limpou os galhos de modo a deixar apenas o tronco, em tamanhos padronizados. As toras limpas e padronizadas foram carregadas em um caminhão grande e levadas pelo motorista à fábrica de painéis de madeira, onde foram descarregadas. A fábrica é bastante automatizada, com diversos engenheiros e operários que controlaram tudo que aconteceu a partir deste momento. As toras da minha mesa passaram por uma série de processos mecânicos, como descascamento, picagem, seleção, secagem e compactação. Um revestimento melanínico branco foi aplicado, que é o que dá a cor da minha mesa. Em uma marcenaria, uma pessoa negociou as chapas de MDF com a fábrica, pagou usando um banco, e as chapas da minha mesa foram carregadas em um caminhão, transportadas até a marcenaria por um outro motorista, e descarregadas por uma outra pessoa. Talvez essa mesma pessoa que negociou as chapas também negociou os parafusos da mesa com uma fábrica de parafusos, o papelão da embalagem de uma fábrica de papelão, o plástico da embalagem com uma fábrica de embalagem, o papel para manual de instruções com um distribuidor de papel, etc. Na marcenaria, alguém pensou no desenho da mesa, e criou um projeto. Seguindo esse projeto, os marceneiros cortaram os painéis, furaram e embalaram a mesa. Outra pessoa na marcenaria deve ter negociado a venda da mesa pronta com alguém da loja de móveis. Fechado o negócio, outras pessoas realizaram o carregamento, transporte, descarregamento e estocagem da minha mesa. Pessoas completamente diferentes programaram o site por meio do qual fiz a compra da mesa na internet. E ainda outras pessoas foram responsáveis por carregar a minha mesa em um caminhão, transportá-la até o antigo apartamento da minha esposa. Lá, eu montei a mesa, na forma como ela se encontra hoje. Nós mudamos algumas vezes de apartamento, e nesse processo algumas outras pessoas nos ajudaram a transportar a mesa de um local até outro, até ela se encontrar aqui.
É provável que muitos milhares de pessoas colaboraram anonimamente para que essa minha mesa terminasse aqui onde está agora. Que dirá então da lista dos 13 itens? Que dirá do meu apartamento, ou de tudo que posso ver a partir da minha varanda, um pequeno pedaço de uma das mais de cinco mil cidades do Brasil?
Como pode alguém crer que essa trama praticamente infinita de colaboração pode se dar a partir de uma luta de todos contra todos, ou que é possível gerenciar tudo isso por um governo central?
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