quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Se eu não tivesse um filho


Se eu não tivesse um filho, eu não teria que passar por uma série de provações e desprazeres.

Eu não teria que acordar múltiplas vezes, todas as noites, quando ele tem algum gás que o incomoda e tira-lhe o sono. Ou quando a barriga dele dói de fome e a única coisa que o acalenta é o leite da mãe.

Eu poderia chegar em casa e descansar. Me desligar de qualquer coisa pendente a ser feita, mesmo porque não haveria tanto assim para ser feito. Não haveria brinquedos e panos de boca vomitados jogados por todos os lados. Não haveria carrinho no meio da sala, nem haveria toalha molhada em cima do trocador, que deveria ser pendurada na cadeira para não mofar. Não haveria água a ser fervida e garrafa térmica a ser reabastecida. Não haveria lixeira de fraldas a ser limpa, nem haveria mil coisas da esposa a serem recolhidas, que a coitada não teve tempo durante o dia.

Eu poderia ler um livro, fazer um curso, praticar artes marciais, tocar piano. Não que eu não faça tudo isso, mas faria sem culpa, com tempo para escolher com o que meu coração vai se apaixonar dessa vez.

Eu não teria que trocar a roupa de ninguém, exceto a minha própria, e muito menos teria que trocar de novo porque vomitaram ou cagaram nela assim que foi colocada. Eu não precisaria dar banho em ninguém, exceto em mim mesmo, e muito menos precisaria trocar a água da banheirinha porque cagaram nela assim que o banho foi começado.

Eu não precisaria rezar mil Ave Marias pedindo saúde para ele porque as cólicas o torturam, e outras mil para me dar força para aguentar a gritaria. Eu não precisaria ter que me preocupar com contaminação cruzada de leite de vaca ameaçando desencadear uma suposta alergia. Eu não precisaria aguentar a ligação da minha esposa desesperada durante o dia, com os berros que não me deixam escutar o que ela tem a dizer. Eu nem precisaria plotar peso de criança em curva e ter que me convencer de que zona amarela não é lá tão ruim assim.

Eu poderia simplesmente ter escolhido um caminho mais fácil. Eu poderia não estar morrendo de cansaço.

Mas, Graças a Deus, tivemos nosso filho.

E o eu que vai morrendo nem vale tanto assim. Ele olha tudo em termos compensatórios. Meu filho não me deixa dormir, mas pelo menos ele me dá um breve sorriso de vez em quando. Ele não pára de gritar, mas se eu o abraço ele me acaricia o rosto. Esse eu é um mercenário idiota se acha que o que faz um sofrimento valer é uma compensação momentânea de mesma magnitude. "Pelo menos ele sorri para mim". Que imbecil.

Porque viver sem provações e sem desprazeres não existe, e porque não é a vida que me deve algo, e sim o contrário. Porque, pior ainda, essa contabilidade nunca fecha, e o que fecha é o coração de quem espera contrapartida de tudo que faz. Porque, ora, que diabos se merece nessa vida? Em que momento da existência se assina um contrato, com contratante e contratada, em que as partes se comprometem com iguais deveres e direitos?

Mas sim: porque para o eu ter algum sentido é necessário resignar-se servilmente e amorosamente.

O filho amadurece a alma do pai, digamos, no grito. O berro infantil espanta a vontade pueril do pai de querer correr para os lados, e o atira para a única direção que o amor torna possível, que é para cima. É na birra do filho que a imaturidade do pai dá espaço à virtude.

Ou será que é melhor ser impulsivo que paciente? Ou é melhor ser preguiçoso que responsável? Ou é melhor ser disperso que focado? Ou é melhor ser egoísta que generoso? Ou é melhor a euforia que a equanimidade? Ou é melhor ser inútil que útil?

Mas não: é melhor ser um homem que uma criança.

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